terça-feira, 31 de maio de 2011

O Defeito

Note algo curioso. É o defeito que faz a gente pensar. Se o carro não tivesse parado, você teria continuado sua viagem calmamente, ouvindo música, sem sequer pensar que automóveis têm motores. O que não é problemático não é pensado. Você nem sabe que tem fígado até o momento em que ele funciona mal. Você nem sabe que tem coração até que ele dá umas batidas diferentes. Você nem toma consciência do sapato, até que uma pedrinha entra lá dentro. Quando está escrevendo, você se esquece da ponta do lápis até que ela quebra. Você não sabe que tem olhos - o que significa que eles vão muito bem. Você toma consciência dos olhos quando eles começam a funcionar mal. Da mesma forma que você não toma consciência do ar que respira, até que ele começa a feder... Fernando Pessoa diz que "pensamento é doença dos olhos". É verdade, mas nem toda. O mais certo seria "pensamento é doença do corpo".
Todo pensamento começa com um problema. Quem não é capaz de perceber e formular problemas com clareza não pode fazer ciência. Não é curioso que nossos processos de ensino de ciência se concentrem mais na capacidade do aluno para responder? Você já viu alguma prova ou exame em que o professor pedisse que o aluno formulasse o problema? (...) Frequentemente, fracassamos no ensino da ciência porque apresentamos soluções perfeitas para problemas que nunca chegaram a ser formulados e compreendidos pelo aluno.


(Alves - Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras. São Paulo: Brasiliense, 1995.)

segunda-feira, 23 de maio de 2011

A agonia de nunca se achar (Por Srta Sullivan)

"Estou perdida", disse ela a si mesma. "Como posso escolher o que é melhor pra mim, se nem sei o que é melhor pra mim?"
Pela frustração que sentia, achou melhor não se enganar. Assumiu os riscos e foi atrás do que queria, mesmo sem saber, de fato, o que queria.
Respirou fundo. Caminhou bastante. Pensou. E nada! Nada a agradava. Nada a convencia de que seria novamente feliz.
Queria achar o seu lugar no mundo, mas sem se prender. Na verdade, não sabia do que queria se desprender e em que queria se agarrar.
Como não chegava a conclusão alguma, pensou em desistir. Mas também não sabia fazê-lo. Nunca aprendera a desistir das coisas. Então, seguiu.
Enquanto caminhava, percebeu que também não sabia de onde vinha. Anos a fio caminhando - buscando uma jornada - a fizeram esquecer suas origens. Então, novamente parou.
Seus pensamentos a confundiam cada vez mais. Nada fazia sentido. Mas também se recusava a não entender.
Foi por pura força de vontade e pura obsessão que o entendimento veio: nunca acharia o seu lugar, porque ele nunca existira. Aonde estivesse, este seria o seu lugar no mundo. Este seria o seu lar. Pois o mundo era a sua casa.
Assim, sem a agonia de nunca se achar, resolveu seguir. E não mais parou.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Fragmento... (Água Viva)

"Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada é longa, é sofrida mas é vivida. Porque agora te falo a sério: não estou brincando com palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além das palavras. E um silêncio se evola sutil do entrechoque das frases.

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra - a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia como alívio jogar a palavra fora. Mas aí essa analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente." CL.