domingo, 28 de março de 2010

Eu sei, mas não devia (Marina Colasanti)


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.


Marina Colasanti in "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Sei lá...


Hoje eu acordei com uma vontade louca de postar alguma coisa produtiva aqui no blog, sei lá porque, no pequeno intervalo entre pensar no que escrever e finalmente escrevê-lo houve uma mutação no pensamento.
Não raro essas coisas acontecem comigo. Sou do tipo de pessoa que pensa em fazer as coisas e que acaba não fazendo se paro para pensar sobre elas. Fico viajando sobre o tempo que vai levar, se é mesmo importante, o que eu vou ganhar ou perder com isso, quanto me cansarei, etc. Daí por chegar a conclusão de que não é tão necessário assim, ela fica para depois. Mas não sou assim o tempo todo.
Quantas vezes me peguei fazendo coisas que nunca tinha pensado em fazer... Talvez por isso tenham finalmente se concretizado. Agir sem um plano de ação é muito mais emocionante, mas bem mais arriscado. E eu sou por natureza uma pessoa pragmática. Não sei me jogar sem saber onde estou pisando.
Quando a gente para pra pensar nos prós e contras a gente acaba se travando. Não digo que seja ruim agir assim, pelo contrário, é até muito prudente, mas às vezes perde-se oportunidades por excesso de prudência. Então meu amigo, se joga! Nem sempre é necessário parar pra pensar em como se jogar, se irá cair de cara ou não, mas a verdade é que apenas sentir as coisas como elas são já contribui para que o universo conspire a favor. Sei lá...

sábado, 13 de março de 2010

Simplesmente eu, Clarice Lispector


Finalmente tive a minha tão sonhada oportunidade de ficar "face to face" com "Clarice Lispector".
Ontem fui ao teatro Sesi, em D. de Caxias, assistir a mais magnífica peça de todos os tempos; Simplesmente eu, Clarice Lispector.
Para os amantes desta tão saudosa escritora não é difícil imaginar como a gente sai do teatro depois de 1h (apenas) de espetáculo.
A atriz é incrível! Definitivamente Beth Goulart nasceu para interpretar Clarice Lispector. A postura, as roupas, o penteado, o jeito de falar, a maneira como segura o cigarro, os olhares, tudo! Até a língua presa, que eu confesso não saber que ela tinha (sempre achei que fosse sotaque).
Um texto lindo (de autoria da prórpia escritora). Quatro personagens maravilhosas. Não tem como não se identificar ao menos com uma delas. Joana [de Perto do Coração Selvagem], Ana [do conto Amor], Lóri [de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres] e a mulher anônima [da crônica Perdoando Deus].

Quem tiver a oportunidade de ir assistir, permita-se! Se joga! Vale muito a pena. Não só a pena, a galinha inteira!rs Mas agora, só no centro do Rio.
Permita-se rir, chorar, terminar as frases conhecidas antes da própria "Clarice"...
Fica a dica!

quinta-feira, 11 de março de 2010

I (L) SP


No último fim de semana viajei com minha mãe e vários amigos para uma cidadezinha encantadora no "interior" de São Paulo. Cesário Lange era o nome do lugar.
Para as pessoas que me conhecem e reconhecem minha grande paixão pela vida no campo, fica fácil saber como eu me senti estando, ainda que por poucos dias, num lugar assim. Muito mais feliz do que pinto no lixo, como diria minha irmã.
A vida no interior tem atrações naturais, o que muito me agrada. E para minha plena felicidade, tinha chuveiro elétrico! Pronto, daí eu estava feita. Completamente à vontade.
O curioso é que não choveu lá. São Paulo é um lugar conhecido por viver submerso e presenciar justamente o contrário é um marco histórico na vida de qualquer um. Mas curioso ainda foi voltar pro Rio e saber que o dilúvio de Sampa rolou aqui. Quem diria...
Vale lembrar que quando chegamos lá, sim, estava chovendo. Mas era a garoa de sempre, que todo mundo conhece. O que foi surpresa foi o sol brilhar pra gente horas depois. Mais surpresa ainda eu fiquei quando, consequentemente, comecei a sentir calor. Me senti, mais uma vez, em casa.
Confessarei que não me senti nem um pouco em casa com o frio da noite. Na verdade, nenhum carioca se sentiu à vontade. E fomos claramente identificados porque nenhum paulista andava agasalhado como nós. Nossa maneira de nos vestir é bem diferente da deles - já acostumados com a noite fria.
Não acho necessário comentar o sotaque dos paulistas porque vocês já fazem ideia de como é. Também nem preciso dizer que a articulação deles não é muito clara e isso faz com que você peça para a caixa do supermercado repetir 3 vezes a mesma frase até que você claramente a entenda. Não contarei também que mesmo no interior você acha muitas pessoas de estilo alternativo. E por mais que você queira fugir da confusão que é a cidade grande, é super estranho passar pela praça mais movimentada de um lugar e não ver sequer uma pizzaria, ou churrascaria, ou lanchonete, ou um boteco na esquina. Tudo o que você encontra aberto são: mercados, drogarias e uma sorveteria.
Mas também, o que eu podia esperar? Eu estava no "interior", em meio a muito verde, rios, árvores, respirando ar puro, livre, leve e solta! Isso já foi o suficiente para me deixar feliz.
Hoje, dias depois, ainda sinto o cheiro da grama. Estranho, né? rs